Artigo: Viva Brasília

Ibaneis Rocha Barros Junior

No princípio, Brasília foi só dos bichos: da ema que corria pelos campos, da seriema com seu canto que é como um hino, do jaó com seu piar triste, do mutum, que faz tum-tum-tum, da coruja-buraqueira... Dividiam o céu e a terra calcária com o lobo-guará, o tamanduá-bandeira, o gato-maracajá, a jaguatirica, o inhambuxintã e inhambuchororó, a coruja-orelhuda, o periquitão-maracanã. Viviam à sombra ou pelos galhos do ipê-amarelo, da gabiroba, do pau-santo, da pindaíba, do ipê-roxo, da sucupira, do buriti, do jatobá

Havia períodos de rigoroso sol e pouca água. Havia dias quentes de noite frias. Havia tempos de abundante chuva. Havia horas de muito pouca umidade. O homem, mesmo o índio, não gostava de se fixar por aqui. Era lugar inóspito até mesmo para os mais corajosos. A paisagem, o crepúsculo e a alvorada eram deslumbrantes desde sempre. Mas quase nenhuma pessoa os via, apenas os animais.

Das cidades do litoral, expedições de demarcação iam e vinham. Alguns exploradores desanimavam quando chegavam por aqui. Outros, talvez motivados pelo sonho de Dom Bosco ou pelo ideal dos inconfidentes, tinham fé e esperança. “... e aparecerá aqui a grande civilização, a terra prometida onde escorrerá leite e mel”, havia preconizado o religioso, e alguns poucos acreditavam.

Os desbravadores só se fixaram de vez nos anos de 1950 do século passado. Em perspectiva da nossa história, se contada em dias, vieram apenas ontem, ou anteontem. Após a decisão e a coragem de Juscelino Kubitscheck de colocar a velha ideia em marcha, os brasileiros começaram a chegar para construir a nova civilização – bem no lugar onde estavam apenas os bichos e as plantas.

Seguindo um dito de JK, “nunca deixei para amanhã o que pudesse resolver na hora”, tratores fizeram cicatrizes na mata, carretas chegaram trazendo tijolos, cimento, aço e vidro. Geradores gigantes vieram de muito longe por caminhos sem estrada, atravessando rios. Pássaros de aço começaram a descer em pistas improvisadas de chão esburacado. Jardineiras, caminhões traziam homens e mulheres: os candangos, para construir o novo lugar.

Muita gente criativa e produtiva se empenhou por transformar o cerrado na grande cidade. Juscelino vinha várias vezes na semana, arriscando-se pelos ares. “Deus poupou-me o sentimento do medo”, dizia. Construiu por aqui sua segunda casa, o Catetinho. O arquiteto Oscar Niemeyer veio para morar durante as obras. Bernardo Sayão, que já era um pioneiro de Goiás, rasgou as primeiras estradas para as bandas de Belém. O urbanista Lucio Costa vinha fiscalizar se obedeciam ao plano de seus traçados. Israel Pinheiro comandou a construção desde o Rio de Janeiro, antes de se mudar para cá.

Muita gente cujo nome os livros de história não citam foi tão importante quanto seus guias. Vaqueiros do Nordeste, refugiados da seca, que se tornaram pedreiros de Brasília. Pescadores nortistas, que viraram motoristas de caminhão e jipe. Agricultores do sul, que se tornaram marceneiros. Batedores de pasto em Minas viraram eletricistas. Vieram também crianças para serem alfabetizadas, mães de família, mulheres de fibra, avôs e avós. Vendedores e empreendedores se fixaram na Cidade Livre, hoje Núcleo Bandeirante, com seus pequenos negócios.

Da mais alta autoridade ao mais humilde peão de obra, todos que viveram os primeiros dias enfrentaram a poeira vermelha que impregnava a pele, manchava as roupas, irritava os olhos, que não saía com o banho, que formava uma crosta, que se tornava uma segunda pele. A poeira de Brasília era o batismo verdadeiro. Tijolo por tijolo, essas pessoas sofridas e lutadoras edificaram palácios, ministérios, igrejas, catedral. Cavaram o lago, construíram represas. Levantaram casas e prédios residenciais. Abriram e asfaltaram largas avenidas.

Hoje, as pessoas estão cansadas de ter notícia de obras públicas que não se concluem nunca, que viram ruínas antes de servirem à população. O exemplo ao contrário é exatamente Brasília, pronta em menos de quatro anos. Inacreditável. A igrejinha de Nossa Senhora de Fátima, primeira obra arquitetônica concluída dentro do Plano Piloto, ficou pronta em 100 dias! O Catetinho, em cerca de 10 dias — e feito por quatro pessoas: o pernambucano Joaquim dos Santos, os mineiros Antenor Soares e Sebastião Calazans e o português Francisco Marins. A construção de Brasília é um espanto até mesmo em termos da História da Humanidade.

O milagre do florescimento da urbe de concreto aconteceu na frente de todos esses pioneiros, por suas mãos. Uma cidade belíssima, original. Futura sede de decisões e dos Três Poderes. Orgulho de todos os brasileiros, objeto de atenção do mundo, aqui por meio de suas embaixadas. Região também das nascentes cidades-satélites que abrigaram tantos candangos, da luta diária pela sobrevivência.

Antes de Brasília, o Brasil era desunido. Ir de Goiânia até o Rio de Janeiro levava três meses, tornou verdade: “Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebros das mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada, com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino”.

Os avôs e avós que vieram para Brasília morreram. Os pais e mães se tornaram avós e até bisavós. As crianças cresceram, tiveram filhos. Os filhos, em muitos casos, já estão grandes, estudaram e contam com condições sociais muito melhores do que seus antepassados. Apenas uma dessas trajetórias humanas ocorridas no Distrito Federal valeu a construção desta cidade.

Hoje Brasília é consolidada. As cidades do DF somam pouco mais de 3 milhões de habitantes. Os monumentos continuam impressionando, como há seis décadas. Tantas paisagens, tanto céu, tanta arquitetura transformaram Brasília em verdadeira musa para os fotógrafos, para os pintores, para qualquer caçador de imagens. Mas também é uma cidade viva em um DF em expansão. Desigual, com áreas de riqueza e de pobreza, exige trabalho incansável de quem a governa.

Os antigos donos do Distrito Federal, os passarinhos, os roedores, andam um pouco mais escondidos. Mas com as árvores sinuosas ainda podem ser encontrados pelos jardins, parques e matas — porque Brasília continua integrada com a natureza. Com sorte, é possível encontrar até um tapaculo-de-brasília, pequena ave acinzentado-azulada descoberta durante a época da construção, que bem que poderia ser o símbolo da capital.

*Ibaneis Rocha Barros Junior, é Advogado e Governador do Distrito Federal.

Edilayne Martins

"Não viva para que a sua presença seja notada, mas para que a sua falta seja sentida." (Bob Marley)

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