Quando quem deveria ajudar constrange

Homens trans evitam ir ao médico por causa dos constrangimentos que sofrem

Eles nasceram no corpo de uma mulher. Passaram pela infância como meninas. Na puberdade viram os seios crescer e o corpo se transformar, ganhar contornos, mas a contragosto. Na maioria dos casos, é nessa época que essas pessoas se reconhecem como transexuais e optam pela mudança de gênero, ainda que sem redesignação sexual. Mas a transição para o gênero masculino ainda não supera o desafio de ser um homem trans. Eles passam a enfrentar outras dificuldades e até violências contra a dignidade, como o acesso ao serviço de saúde, por exemplo. Para os homens trans, ir ao médico chega a ser um transtorno. Por isso, muitos nem se tratam. Seja no SUS, nos planos de saúde ou na rede privada, os relatos de desconforto são constantes. Profissionais de saúde que não sabem lidar com a situação e a burocracia para acesso aos hormônios, levam muitos trans ao uso indiscriminado da substância e à automedicação, o que coloca a vida deles em risco. Uma das exceções é o Adolescentro, serviço público de saúde no DF que atende meninos e meninas, independente de gênero. E em agosto deste ano Brasília ainda ganhou o ambulatório trans para tratar da saúde de quem, até agora, estava praticamente excluído dos consultórios.

Nos dois casos, o acesso ainda é restrito. O ambulatório, por exemplo, só atende adultos. E sem acesso a mais locais para se tratarem, os homens trans sentem na pele o peso do preconceito. Um dos mais fortes é na hora de ir ao ginecologista. Por terem fisiologia feminina, eles precisam do auxílio desse profissional, o que faz com que alguém, com aparência masculina, seja olhado de forma preconceituosa e seja submetido a uma avalanche de perguntas, ainda na sala de espera. E diante de muitos médicos, segundo eles, o constrangimento continua.

Leonardo Lima é homem trans e coordenador do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (IBRAT).

As diversas dificuldades enfrentadas pelos homens trans levaram à criação do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (Ibrat). O coordenador da área de saúde do Ibrat no Distrito Federal Leonardo Lima, 23 anos, diz que muitos meninos deixam de ir para as consultas e de fazer o exame preventivo por vergonha. “Ninguém imagina que um homem vai acessar um consultório de ginecologia”, diz.

Outro desafio é o acesso aos hormônios. Para as mulheres trans o acesso é facilitado, pois as farmácias vendem anticoncepcionais sem necessidade de receita médica. Já para os homens trans terem acesso à substância é preciso passar por um processo de autorização para conseguir a receita, segundo Leonardo Lima. “A testosterona é vendida de forma controlada. Você não pode simplesmente ir a uma farmácia e comprar”, comenta. Quando finalmente têm a receita médica, o desafio seguinte é conseguir encontrar o medicamento à venda. Leonardo Lima conta que quando iniciou a transição há dois anos, mesmo com receita médica, não encontrava nas farmácias os hormônios para comprar. “Simplesmente não faziam pedido. Elas mesmas [as farmácias] preferiam não fazer”, afirma.

Atualmente Leonardo compra com mais facilidade, porque encontrou uma farmácia que sempre tem o medicamento em estoque. Segundo ele, é por causa da dificuldade que muitos homens trans acabam comprando medicamentos clandestinos, de procedência duvidosa e sem saber ao certo os efeitos colaterais do produto. O uso de hormônios sem garantia de origem pode trazer riscos graves à quem usa.

O psiquiatra e homem trans Gabriel Graça, 51 anos, também destaca os riscos de tomar hormônios clandestinos e não poder fazer o controle necessário com um médico. Ele lembra também que algumas mulheres trans injetam silicone em locais inapropriados e muitas vezes contraem infecção por conta disso. Leonardo Lima ainda alerta para outros riscos. Ele diz que segundo a literatura, os homens trans têm maior chance de ter e ter, a curto prazo, doenças diversas, como do coração e câncer de mama, ovário e útero. “Se a pessoa tem uma predisposição genética para ter diabetes, pode vir a ter diabetes mais cedo do que teria”, exemplifica.

Ambulatório Trans

O psiquiatra Gabriel Graça, explica que o SUS garante o direito ao atendimento das pessoas trans, inclusive o acesso aos hormônios e a realização das cirurgias de mama e de redesignação sexual, porém existem poucos lugares no Brasil que oferecem esses serviços. No Distrito Federal nenhuma destas opções está disponível pelo SUS. O diferencial é o Ambulatório Trans, um serviço público de saúde para homens e mulheres transexuais maiores de 18 anos localizado dentro do Hospital Dia.

Inaugurado em agosto deste ano, o espaço conta com atendimento médico especializado, psicologia e psiquiatria. O psiquiatra acredita que é um serviço importante para a população de Brasília. “As pessoas que têm disforia de gênero e residem aqui procuram tratamento em outros estados ou procuram serviços privados. Não tinha um serviço público”, relata. Para ele isso significa que a população menos favorecida financeiramente não tinha onde se tratar. “As pessoas acabam se submetendo a tratamentos muito inadequados, que não são e nem merecem ser chamados de tratamento”, afirma.
Laboratório Trans localizado no Hospital Dia tem atendimento exclusivo para população trans.

O Ambulatório Trans surgiu a partir da organização dos movimentos sociais que passaram a demandar o governo, segundo o gerente de atenção à saúde de populações em situação vulnerável da secretaria de saúde do GDF, Vittor Ibanez. Ele explica que paralelo a isso a secretaria tem um grupo de profissionais preparando os laudos e projetos necessários para que o SUS autorize o governo distrital a oferecer tratamento de hormônio para essas pessoas e também realize cirurgias. Vittor diz que esse é um processo demorado. Além disso há o processo para ampliar os profissionais que atendem no ambulatório, já que não há atendimento de ginecologia e urologia, dois serviços importantes para a população. “São profissionais que não é fácil de conseguir por uma questão de quantidade de profissionais e tamanho da demanda”, diz.

Sem acesso ao atendimento pelo SUS, os homens trans que optam pela cirurgia de retirada das mamas precisam pagar pelo procedimento, que custa em média R$ 6 mil reais. Para bancar o custo, não raro esses rapazes fazem vaquinhas virtuais para arrecadar o dinheiro necessário. Geralmente, familiares de pessoas trans que já realizaram a cirurgia se organizam para ajudar os meninos que não têm o dinheiro suficiente para custear o procedimento.

Leonardo Lima explica que o nome do processo completo é “mamoplastia masculinizadora” e dentro dessa cirurgia existem três procedimentos: a mastectomia radical, que é a retirada da glândula mamaria; a retificação das placas aureolares, que é quando enxertam a auréola da pessoa; e, por último, os retalhos cutâneos, que é a retirada do excesso de pele. “Se retira as glândulas mamárias fica o excesso de pele, tem que retirar o excesso de pele e enxertar a auréola”, detalha.

Discriminações

Quando aos 15 anos se identificou como homem trans e revelou isso para as pessoas, o estudante Eduardo Kimura, 17 anos, precisou enfrentar a discriminação por parte dos colegas, professores e direção da escola. Nascido como Eduarda já sofreu discriminação ao precisar de atendimentos de saúde. É por isso que o rapaz diz que muitas vezes evita ir ao médico. “A última vez que fui [foi porque] quebrei minha mão, aí pedi para o atendente colocar meu nome social na ficha e ele negou”, disse. Ofendido, diante da recusa, Eduardo foi embora sem ser atendido. Com dor, ele voltou horas depois e a outra atendente aceitou identifica-lo pelo nome social, um direito assegurado pelos decretos nº 8727/2016 do governo federal e nº 37.982/2017 do Distrito Federal. Para Eduardo, esse é um dos exemplos de preconceito velado, pois quando essas situações ocorrem, muitas pessoas alegam que a lei exige o nome civil. “Se uma enfermeira deixa eu colocar meu nome social e outro não, não é uma questão de lei, é uma questão de preconceito”, afirma.

Leonardo Lima diz que situações como as enfrentadas por Eduardo são corriqueiras. Ele conta que mesmo na rede privada não é fácil conseguir atendimento médico. “É difícil achar um atendimento médico que simpatize ou que não te demonize por ser um trans”, relata. Ele diz que para acessar um médico precisa explicar tudo, às vezes até mostrar explicações da internet. “A gente ajuda o médico a nos aceitar. Isso é uma luta”, diz.

No Adolescentro, que funciona na L2 Sul, meninos e meninas transexuais têm acesso a atendimento médico, psicológico e psiquiátrico, segundo Eduardo Kimura. Lá, os trans ainda são acompanhados por ginecologistas e endocrinologistas que os orientam a usar hormônios na dose certa para a transição. O problema, segundo ele, é que como o centro não atende apenas pessoas LGBTI sempre é muito cheio e difícil de conseguir consultas. Mas não há outra alternativa, quando o paciente é menor de idade.

Eduardo disse que se decepcionou quando descobriu que o Ambulatório Trans atende apenas pessoas a partir dos 18 anos. Ele acredita que o ideal seria os adolescentes também serem tratados no ambulatório, para evitar o constrangimento de falarem abertamente para um público que não se identifica com as questões dos transexuais e ainda é imaturo para saber lidar com tantas diferenças.

Eduardo Kimura relata a importância do acompanhamento com ginecologista, inclusive para acompanhar a taxa hormonal. Mas diz que não faz esse acompanhamento, porque ainda é muito difícil de conseguir vaga para ser atendido pelo SUS. Encontrar um endocrinologista particular que receita hormônios para pessoas trans e garanta o acompanhamento necessário também é muito difícil, segundo o rapaz. “Basicamente todo mundo que consegue fazer tratamento hormonal ou é de forma clandestina, que é bem perigoso, ou é a partir do encaminhamento público”, afirma.

Ir ao hospital é outro problema, já que o Adolescentro funciona apenas como um posto de saúde. No atendimento de emergência, em geral, a pessoa é chamada, em voz alta, e pelo nome de registro. “E muitas vezes o médico é inconveniente no jeito de perguntar as coisas. Isso é muito ruim”, relata Eduardo.

Apoio que muda tudo

Se a sociedade discrimina e o serviço de saúde não acolhe, o apoio da família pode fazer a diferença. O estudante Renato Borges, 21 anos, tem uma família assim. Os primeiros sinais sobre a sexualidade e a personalidade do rapaz surgiram na infância. Os pais buscaram ajuda profissional. Ele lembra que a primeira psicóloga e o primeiro psiquiatra que o atenderam não sabiam lidar com a situação. Pai de Renato, o servidor público Antônio Celso Borges, 63 anos, conta que quando o filho era criança uma psicóloga disse que faltava uma figura feminina forte para influenciar o filho, que nasceu Renata. “Como a mãe é veterinária, só andava de macacão e botina”, relata.

Renato recebeu apoio da família. O que foi fundamental para a transição dele.

Mãe de Renato, Tânia Borges, 52 anos, conta que isso desencadeou um processo nela que desde então passou a usar só sapatos de salto alto. “Virei uma patricinha, uma perua e não adiantou nada”, disse. Ela conta que quando saíram da consulta com a psicóloga, eles foram comprar muitos vestidos, sapatos de salto e ela começou a usar maquiagem e levar “Renata” à manicure. A mãe diz que fez tudo que poderia. Como essa atitude da mãe não gerou a “mudança esperada” no comportamento de “Renata”, a família não deu prosseguimento na terapia.

Na adolescência, quando “Renata” se descobriu transexual e contou para a família, os pais buscaram novamente terapia com psicólogo e psiquiatra para ajudar o filho a se tornar o Renato que ele sonhou ser. Mas o primeiro profissional que o atendeu tentava convencer o já garoto que ele não era transexual. “Ele era da equipe da cura”, diz a mãe, ao lembrar que o médico psiquiatra queria reverter a situação.

Depois da certeza de que era um homem trans e do processo de transição iniciado, Renato se aproximou mais da família e o convívio entre eles mudou por completo, conta a mãe. “Ele hoje é uma pessoa feliz, que conversa, que brinca”, diz. A relação com o irmão mais novo também teve uma mudança radical. Renato conta que hoje os dois são mais do que irmãos, mas que antes a relação deles era quase inexistente. O irmão de Renato, Henrique Borges conta que já sabia antes de todo mundo, mas que ignorava os comentários que ouvia sobre o irmão. Diz que levou um tempo para compreender tudo, mas que depois recebeu o irmão de braços abertos. “Entendia que se tinha sido difícil para a gente, pra ele era muito mais”, diz.

Renato e o pai se tornaram mais próximos após o processo de transição.

O apoio da família foi fundamental para Renato. Apesar disso ele também passou por dificuldades no atendimento de saúde. Renato diz que até hoje ele tem um problema com o plano de saúde. Mudou o nome, mas não pode trocar o gênero. “Se mudar no plano de saúde tem um monte de exame que eu não posso fazer”, relata. Entre os exames e consultas, estão os ginecológicos. Ele diz que a ida ao ginecologista é uma jornada e às vezes até momento de constrangimento. “Eu estava com muita vergonha de ir”, conta. Ele levou a mãe com ele, pois sabia que se fosse discriminado direta ou indiretamente a mãe compraria a briga.

Renato conta que ligou para todos os ginecologistas do plano de saúde perguntando se atendiam pessoas trans. As respostas eram acho que sim ou vou verificar. Apesar de saber que tem o direito de ser atendido por qualquer médico, ele queria evitar algum constrangimento. Cansado das respostas, resolveu marcar e ir sem dizer que era homem trans. A mãe conta que ficou surpresa por apenas perguntarem se era a especialidade correta e para quem dos dois era a consulta e o exame. Renato acredita que pode ser porque as pessoas estão com medo de serem processadas, mas também acredita que as pessoas podem estar melhorando. “Que bom que a humanidade está mudando”, comemora.

Despatologização

A campanha chamada “Ser Trans Não é Doença” é organizada por diversas entidades e organizações ligadas aos direitos das pessoas trans e defende a despatologização das identidades trans. Ou seja, defende que no Código Internacional de Doenças (CID), a transexualidade não seja considerada um transtorno mental. O coordenador do Ibrat Leonardo Lima explica que o Instituto faz parte da campanha e defende a revisão do CID, mas que assegure acesso ao serviço de saúde, como acontece com as mulheres grávidas.

O psiquiatra Gabriel Graça explica que a Associação Psiquiátrica Americana lançou há alguns anos o manual estatístico da associação. “Continua recebendo uma rubrica diagnóstica, entretanto mudou o nome para disforia de gênero e a palavra transtorno saiu”, afirma.

O psiquiatra explica que diferente dos homossexuais, os trans sentem desconforto com o corpo. “O indivíduo sozinho dentro do seu quarto se sente em desarmonia”, afirma. Ele explica que ter um sexo biológico e uma identidade diferente de gênero provoca sofrimento emocional, torna as pessoas mais vulneráveis à depressão, à ansiedade, além de questões de preconceito. “Tem estudos que mostram, por exemplo, que apenas 1% dos transgêneros chegam a fazer curso superior. Porque? Porque são pessoas mais vulneráveis”, diz.

Faltam dados

Em maio de 2017 foram relatados no Creas da Diversidade 98 casos de transfobia. Desses, em 35 casos as vítimas foram homens trans. Em período equivalente de 2016, foram 38 relatos por transfobia. Desses, 10 casos foram com homens trans. Apesar de importantes, esses são os únicos dados disponíveis sobre homens trans. A ausência de mais dados é um fator que contribui para a invisibilidade dessa população e para a dificuldade em se construir políticas públicas para elas, conforme explicou a assessora especial da Coordenação de Diversidade LGBT do DF Ana Paula Crozué.

Segundo a assessora de direitos humanos do escritório da ONU no Brasil Angela Pires, o governo brasileiro tinha um registro de violência contra as pessoas LGBT através do Disque 100, canal de denúncia de violações de direitos humanos. Ela diz que esse relatório parou de ser produzido há alguns anos. Apesar de diversos contatos com o Ministério da Saúde em busca de dados nacionais não informaram se possuem dados sobre a população trans.

Transição

O psiquiatra Gabriel Graça explica que sexo biológico e gênero são coisas diferentes. “Na grande maioria das vezes o gênero concorda em relação ao sexo biológico, mas nem sempre”, afirma. O psiquiatra diz que segundo a literatura, de cada 60 mil crianças que nascem com o aparelho reprodutor masculino, uma tem um gênero discordante. E a cada 100 mil crianças que nascem com o aparelho reprodutor feminino, uma tem a identificação de gênero masculina. Gabriel diz que o porque isso se desenvolve ainda é uma questão em aberto e motivo de muitas pesquisas. Há estudos que apontam para processos neurobiológicos. Ele explica que no período pré-natal, se ocorre o processo chamado dimorfismo sexual cerebral, é como se o cérebro adquirisse uma espécie de pré-disposição para o masculino ou pré-disposição para o feminino. Depois, com o crescimento vem os processos de identificação com figura paterna e materna. O psiquiatra explica que o processo de identificação do desenvolvimento psicológico associado ao dimorfismo sexual cerebral resulta na identificação de um gênero. “Seria uma pré-disposição para se identificar com o gênero masculino ou feminino”, diz.

Por Juia Lanz

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