Tia Zélia, a baiana que conquistou a Vila Planalto


Conhecida por ter conquistado o paladar do ex-presidente Lula (PT), a cozinheira é querida por todos que frequentam o seu restaurante, na Vila Planalto, e pelos moradores da região. A baiana veio para Brasília há 44 anos em busca de oportunidade, e encontrou uma clientela para chamar de família

Foto: Thaís Moura

A 2,5 km de distância do Palácio do Planalto, uma viatura da Polícia Militar passa a aproximadamente 15 km/h em uma rua pacata e pouco movimentada da Avenida Pacheco Fernandes Dantas, na Vila Planalto, em Brasília. São 16 horas de uma quarta-feira chuvosa, e dentro do carro estão dois policiais, que olham com desconfiança para um grupo de seis pessoas que bebem cerveja e gargalham alto debaixo de uma tenda, em frente a um restaurante baiano que existe há mais de 20 anos no Distrito Federal.

As expressões sérias e intimidadoras do rosto das autoridades só mudam quando avistam Tia Zélia, a dona do tal restaurante. A cozinheira os cumprimenta de longe, e mesmo com uma máscara vermelha cobrindo o rosto, é possível sentir o seu sorriso de orelha a orelha, que é retribuído pelos policiais. Depois disso, eles voltam a acelerar e partem para outra rua da Vila Planalto, como se o único objetivo deles na Avenida Pacheco fosse garantir a segurança do restaurante da Tia Zélia.

Maria de Jesus Oliveira da Costa, a tia Zélia, tem 67 anos e abriu o seu negócio em 5 de outubro de 1998, depois de trabalhar por mais de 30 anos como empregada doméstica, vendedora ambulante, cozinheira de cantina, entre outras profissões autônomas.

Hoje, basta pesquisar o nome do restaurante na internet para se deparar com os melhores comentários, que elogiam principalmente a rabada e a feijoada da baiana. Mas todas as avaliações têm uma coisa em comum: destacam o atendimento afetivo e atencioso de Tia Zélia. “Não há nada melhor em Brasília. Parece comida de avó”, comentou um internauta, no site Restaurant Guru. “A dona é um fenômeno em atendimento e qualidade no que serve”, acrescentou mais um. “Tia Zélia é a melhor anfitriã que já vi. Passa em todas as mesas com sua simpatia e simplicidade pra trocar uma boa ideia sobre qualquer coisa”, escreveu outra usuária.

Não é a toa que a baiana conquista todos que vão lá. Isso porque ela vê os clientes como uma família, e o restaurante, como sua casa. “Minha casa é humilde, mas aqui eu recebo muita gente maravilhosa, graças a Deus. Tem muita gente boa. Aqui eu não tenho cliente, tenho uma família”, conta Tia Zélia.

E mesmo enquanto divaga sobre as diversas histórias que viveu em seus 67 anos de vida, ainda mantém o olhar atento aos fregueses, ou melhor, a sua família. “Toma cuidado, neguinha! Não desce por aí não, vai por um lugar mais baixo que a rampa escorrega demais!”, exclama a cozinheira, preocupada com uma de suas clientes que recentemente machucou o pé. O cuidado que tem com cada freguês é tão grande que ela insiste mais duas vezes para que a moça tome cuidado. Zélia só volta para a entrevista quando tem certeza que a cliente está bem, e de barriga cheia.

Foto: Thaís Moura

A fachada do restaurante da Tia Zélia é a mais simples possível, decorada por azulejos combinados com paredes laranjas e janelas brancas. Do outro lado da rua está a horta da cozinheira, onde planta cebolinha, pimenta-do-reino, e outros temperos essenciais para o sabor baiano de seus pratos. O lugar não chama atenção alguma, e quem passa por alí, não imagina que é frequentado por artistas, políticos, ministros, juízes e procuradores de todo o país, e de todas as ideologias. “O povo que passa aqui é tudo selecionado, de elite. Não tô discriminando, mas só vem aquele povo bem alto escalão mesmo. Não são muito humildes, mas todos são educados comigo. De vez em quando aparece alguns abusados”, explica a chef.

E mesmo com a presença de tantas pessoas importantes, que discutem até assuntos de Estado nas mesas de seu restaurante, Tia Zélia garante que não presta atenção na conversa de ninguém. “Eu escuto muita coisa importante aqui, e desimportante também. Mas eu não vou falar pra ninguém porque não é da minha conta. Tem coisa que você tem que passar por cima e fingir que não viu, que é a melhor coisa que você vai fazer na sua vida”, conta.

A maioria do “alto escalão” da capital federal chega a Tia Zélia por indicações. E a primeira indicação de peso que o restaurante da baiana recebeu foi do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2008.

Foi no segundo mandato do petista que a baiana conheceu Lula. Antes disso, sonhava em encontrar o homem em quem votou e que, segundo ela, trouxe luz, água e dignidade para o Nordeste. Tudo começou quando Tia Zélia contou para um cliente sobre esse sonho. Por acaso, o cliente era assessor de Lula, e alguns dias depois, falou para o ex-presidente sobre a chef baiana que cozinhava uma rabada de dar água na boca. Ele se interessou, e pediu para que buscassem no dia seguinte uma porção da tal rabada na casa de Zélia. “Mas eu fiz a rabada, fiz arroz, feijão, e uma mousse de tamarindo. Cheguei nem a dormir de noite no dia anterior, a emoção era muito grande, sabe? E tinha que ser o sal no padrão, tudo no padrão”, conta Tia Zélia.

Era um domingo de 2008 quando o ex-presidente experimentou a comida de Zélia, e assim que terminou, mandou desmarcar todos os compromissos do dia para receber a sua nova cozinheira favorita no Palácio do Planalto. “Quando eu cheguei dentro do gabinete dele, ficou tudo branco pra mim. E ele disse bem assim: ‘respira, companheira, respira fundo, quer uma água?’. Eu disse que não, respirei fundo e conversei com ele por horas”, conta. Depois disso, os dois se aproximaram cada vez mais, e hoje, Zélia o considera um amigo. “As pessoas perguntam se ele me dava dinheiro, mas ele não tinha dinheiro para me dar. Ele não me ajudou com dinheiro, ele me ajudou com dignidade. Me deu nome, levantou meu restaurante. Porque depois que ele comeu aqui, o movimento aumentou demais. Todos que vinham visitar Brasília, ele mandava almoçar aqui. E até hoje essas pessoas vêm”, explica a baiana.

Por causa do carinho e amizade que tem com o ex-presidente, ao menos 5 fotos diferentes de Lula preenchem as paredes vermelhas do interior do restaurante da Tia Zélia. Mas por causa dos escândalos de corrupção dos quais Lula foi acusado de se envolver, e que fizeram com que ele fosse preso em 2017, nem todos os fregueses lidam bem com a decoração da baiana. Em um dos comentários no Google a respeito do restaurante, um internauta escreve: “Só não ganha cinco estrelas pelo péssimo gosto na decoração do ambiente (pendurar foto de bandido pega mal)”. Mesmo assim, ele admite que a comida “é excelente”. “Tem gente que nem come lá dentro, nem entra porque fica incomodado com as fotos. Mas eu digo que não tem problema não, meu bem, pode comer lá fora”, diz Zélia.

Além das fotos com o ex-presidente, o interior do restaurante também é decorado por antiguidades, como um piano que existe há mais de 80 anos, e artesanatos que Tia Zélia ganha de seus clientes, ou melhor, de sua família. “Minha casa tem legado de muita gente, presente do mundo inteiro, da Argentina, Suíça, Austrália… Um traz um prato, outro traz um copo, um papel toalha, outro traz uma saboneteira pro banheiro. Eu aceito presente de todo mundo. Inclusive, se viajar, traz um bibelô pra mim”, diz a cozinheira.

Por causa desse legado que deixaram no terreno de seu negócio, as pessoas que mais marcaram a vida de Tia Zélia foram as primeiras nove pessoas que passaram pelas portas do restaurante em sua inauguração, em 5 de outubro de 1998. “Foram os primeiros que acreditaram em mim”, diz. Não é a toa que ela se lembra de todos, e eles se lembram dela.

A fidelidade dos clientes de Tia Zélia é tamanha que, mesmo na pandemia, o restaurante não correu risco de fechar as portas. “Força, tia, vai dar tudo certo”, é o que os fregueses dela falaram quando a Covid-19 chegou ao Brasil. O restaurante ficou fechado por apenas 16 dias, por ordem judicial, mas assim que obteve autorização do governo, abriu novamente e passou a vender marmitas. Hoje, o local volta às atividades aos poucos, seguindo todas as medidas de prevenção contra a doença, como o distanciamento entre os clientes e mesas, e o uso de máscara e álcool em gel. “Vendi muito bem minhas marmitas, não tenho do que queixar. Meu pessoal me ajudou demais”, conta a chef.

Origem e vida pessoal
Nascida no município de Buritirama, na Bahia, Tia Zélia chegou em Brasília há 44 anos, em 1976, em meados de seus 20 anos. Ela lembra que, quando chegou na Vila Planalto, a região não tinha mais do que 14 casas, muito barro, e alguns barracos de madeira. “Era só matagal. O máximo que tinha era aqueles botecos e cantinas onde a gente comprava pão, leite e arroz. Essa era a Vila Planalto”, descreve. Foi cozinheira de cantina, empregada doméstica e trabalhadora autônoma em casas e lojas de festa e de buffet por 21 anos, até que resolveu abrir o seu próprio restaurante e cozinhar da forma que sabe melhor: com muito amor, e claro, temperos baianos.

Mas antes de se tornar a proprietária de um restaurante que hoje é ponto turístico no Distrito Federal, Tia Zélia tinha uma rotina muito diferente. Assim como o resto de sua família, ela não chegou a terminar os estudos básicos. Costuma dizer que estudou na “escola da vida”. “De onde eu vim era tudo roça, não tinha como estudar porque não tinha escola. Eu não tenho estudo, mas sou muito inteligente e converso com qualquer formado do mundo, do Brasil inteiro. Já chegou repórter para me perguntar se eu sou formada, eu digo ‘sou, da escola do mundo’, porque não tem formatura melhor do que essa”, conta.

Em Buritirama, mesmo quando ainda era menor de idade, Zélia trabalhava como lavradora, ajudando os pais e seus sete irmãos em uma casa com quatro quartos, teto de palha e chão de barro. Todos os dias acordava antes do sol raiar para pegar água na fonte com uma cabaça. No rio São Francisco, lavava suas roupas e panelas. Também varria os terreiros em que sua família plantava, e depois do almoço, usava uma enxada para capinar o arroz e a mandioca. Quando o sol começava a se por, caminhava de volta para casa com a enxada nas costas, e lá, acendia o fogo de lenha no terreiro, onde jantava com a família. Antes de dormir, escovava os dentes com os dedos.

“Hoje, já não tem mais tanto mato na Bahia. Mas na época a gente carregava água na cabeça, carregava feixe de lenha para cozinhar, cozinhava num fogão de lenha. Agora não, porque depois do governo Lula, teve luz para todos. Ele foi o pai da humanidade. Muita gente não quer aceitar, mas presidente igual Lula não tem mais. Porque lá ele deixou água, deixou luz, deixou uma granja”, afirma Tia Zélia.

Ela decidiu vir para Brasília por dois motivos: “Primeiro porque lá era muito difícil, era tudo roça. E também porque os pais dos meus filhos, que era operário e trabalhava em uma construção, já morava aqui”. Hoje, Zélia tem cinco filhos e seis netos. Ela veio para a capital em busca de oportunidade, e encontrou. “Aqui melhorou muito pra mim, eu fui lavar roupa na mão, já tinha um tanque para lavar. Já podia comprar carne, já tomava refrigerante, comprava pão, me vestia melhor, né?”.

Quando abriu o restaurante na Vila Planalto, Zélia tinha apenas quatro pratos, duas panelas e um fogão de quatro bocas. Começou com quatro funcionários e o equivalente a 50 cruzeiros no bolso, que ela usou para comprar dois quilos de costela, um frango, um pacote de arroz, uma lata de óleo, um quilo de feijão, duas cabeças de alho, dois pimentões e quatro tomates. No mesmo dia, gastou tudo que comprou.

Hoje, o restaurante conta com 8 funcionários durante a semana, e 12 no fim de semana. Mas esses funcionários trabalham sob muita exigência, para manter sempre a qualidade da comida e do tempero baiano. “Minha mãe é bastante exigente, muito organizada, gosta das coisas muito bem limpas, muito bem feitas. Às vezes acho que ela vai ao extremo na exigência, porque ela prova tudo que a gente faz, gosta muito de corrigir as coisas. Já levei muita bronca aqui”, conta Márcia, filha de Zélia, que trabalha no restaurante desde que abriu.

E a rotina de Tia Zélia é muito diferente da que vivia na Bahia. Ela continua acordando cedo, mas a primeira coisa que faz é colocar a água do café para esquentar. Depois, coa a café, e em seguida, deixa o feijão no fogo. “Aí eu vou fazendo o que precisa fazer, o frango, a carne, o que tiver. Aqui a gente não serve comida velha nunca. A comida é feita no dia, e quando sobra alguma coisa, eu junto tudo e doo para a ONG do Padre Vanilson”, conta.

Por causa do que conquistou e das dificuldades que passou, Tia Zélia se considera uma mulher de “muita sorte”. Ela trabalha de segunda-feira a sábado, e o restaurante funciona das 11h30 às 14h. E no domingo, quando está de folga, ela gosta de descansar mesmo. “Eu deito na minha cama no domingo, não sou muito de sair. Quando eu não quero ficar só, vem o meu vizinho e a esposa dele, ou a minha nora e meu filho pra gente fazer um feijãozinho. Eu sempre faço um pouco de comida e eles trazem outro prato. A tradição é essa”, diz. “Gosto muito de comer, só não como mais porque não posso engordar mais, já tô com 67 anos e tenho pressão alta”.

Católica, a baiana se descreve como uma senhora feliz, livre e amada. “Sou muito amada, por Deus e pelo meu povo. Meu aniversário quem faz são meus clientes, por exemplo. Todo ano tem uma festa surpresa pra mim, que eu sempre sei que vai ter”, conta Zélia. Ela se casou apenas uma vez, ainda aos 18 anos, em uma época onde “não existia namoro”. “Ele foi na Bahia pedir minha mão, e naquela época, não tinha namoro. O seu pai dizia ‘seu noivo é esse’ e pronto”, explica a cozinheira.

O casamento durou 14 anos, e hoje ela agradece a Deus pela separação. “Não foi um bom casamento. Hoje sou separada, graças a Deus, é muito bom. Sou livre, desimpedida, e vou para qualquer lugar. Sou igual cachorro, abre a porta do carro e já tô dentro”, conta Tia Zélia, e em seguida, solta uma gargalhada que ecoa alto por todo o restaurante.“Sou solteira há 40 anos, é bom demais… Não namoro, não tenho caso com ninguém. Meu caso é só com meu fogão”.

Política
Os momentos em que mais passou dificuldades financeiras no restaurante foram nos períodos de transição de governo. “No início do governo Bolsonaro, foi um dos piores de todos… por causa que eu sou PT, né?”, diz Tia Zélia, abaixando o tom da voz e olhando aos redores. “Sou cozinheira de Lula, e eles não gostam… né? Aí me discriminam. O povo de Bolsonaro é muito atrevido… São muito escrotos”, conta Tia Zélia sem filtros.

De vez em quando, alguns clientes brincam dizendo que vão levar o atual presidente, Jair Bolsonaro, para comer no restaurante dela. “Eu digo para não trazer. Se ele viesse para cá, eu nem ficava aqui, ia embora para minha casa. Não gosto dele”, revela. “Mas se pedir alguma coisa, com respeito, eu iria servi-lo sim, com educação. Se me respeitar, eu respeito. Mas não vem querer pisar em mim não, porque eu respondo na lata, sem um pingo de medo, olhando nos olhos dele, para ele saber que não é melhor do que ninguém”.

De 2003 a 2010, durante o governo do PT, o restaurante esteve nas alturas. “Foi só sombra e água fria, minha filha. E agora é só frustração”, conta a baiana, e ri alto logo em seguida. Ela diz que, se deixasse, com certeza seria ofendida por apoiadores de Bolsonaro no restaurante. Mas Tia Zélia tem uma resposta na ponta da língua para tudo. “Meu bem, eu não sou política. Sou comerciante”, é o que ela diz a quem tenta criticar o ex-presidente petista diretamente a ela.

Ela ainda tem esperanças de que o PT retorne ao poder, e garante que nem sai de casa para votar se o partido não concorrer nas eleições presidenciais de 2022. “Eu não acho que Lula vai voltar, eu tenho certeza. Ele também tá na expectativa, na esperança de conseguir, mas se ele não for presidente, acho que é vice”, diz Tia Zélia. Por ter sido condenado na Justiça em 2ª instância, Lula segue impedido de concorrer, mas o quadro pode mudar se as condenações forem anuladas no Supremo Tribunal Federal (STF).

“Uns falam que Bolsonaro já está eleito, né?”, afirma Tia Zélia, questionada sobre o aumento de popularidade do atual presidente depois que o governo federal passou a distribuir o auxílio emergencial, antes no valor de R$ 600, e agora, de R$ 300. “Mas não adianta ele dar esse auxílio e botar o feijão e o arroz nas alturas, como ele botou. Ano que vem as coisas vão mudar para ele”.

Por Thaís Moura

Edilayne Martins

"Não viva para que a sua presença seja notada, mas para que a sua falta seja sentida." (Bob Marley)

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